A arde da droga na moldura da vida


UM CONTO BASEADO EM FATOS REAIS


Ele mergulhou em seus erros. Transformou-se em vítima de suas próprias escolhas, e ao encarar seu reflexo naquela poça de água formada pela chuva que caia sobre seus ombros, naquele cruzamento de uma rua qualquer, em uma hora que pouco importava, se deu conta de que houvera se transformado em uma estatística. Um número anunciado no jornal local. Antes da descida sem freio, a vida era uma reta. Estrada sem montanhas onde a brisa lhe tocava o rosto, o horizonte era ensolarado quase ofuscando seu olhar de esperança e qualquer sonho era quase palpável. Tudo era possível.  Mas em tantos cruzamentos que a vida trás, em tantas bifurcações onde tropeçam nossos pés, ou encortinam nossas certezas, as futuras escolhas se tornaram presente. O horizonte feito  tela colorida perdia suas cores a cada passo equivocado, e o sol que enturvara seu olhar deu espaço à noite em pleno meio dia, que ironicamente o deixara ver a escuridão como jamais fora possível antes.  
Aquele caminho outrora reto, ao trocar de pés tornou-se ladeira. Uma descida suave, quase imperceptível, lhe causara a ilusória sensação de que o retorno seria fácil. Era como viver uma aventura solitária, como dar fim ao tédio, animar o dia, e quando tudo lhe cansasse, quando se instalasse novamente a rotina, ele simplesmente voltaria aos antigos planos. Não percebera que ao insistir em sua caminhada, paredes também se erguiam à sua direita e à sua esquerda. Sentia-se sufocar vez ou outra, mas os prazeres do agora escondera o inferno do depois e para ele fora impossível perceber aquele fio estendido no meio da estrada, onde por alheação tropeçaria, e a partir de então, faria parte da própria armadilha, tão pertencentes um ao outro que quem os fitasse em um lugar qualquer, não poderia distingui-los.
Seu sorriso tornou-se a mentira encoberta, e seu olhar era a imagem da angústia. De repente parecera que ali, jamais houvera existido uma criança, ou que tivera algum dia, sabido o significado da palavra esperança. A cada escolha, uma chance se perdia. Pai... Desiludido. Mãe... Angustiadamente perdida. Irmãos, avós, tios, filhos, poucos verdadeiros amigos e até desconhecidos... Cada um em seu tempo fora a imagem de uma porta aberta, cerradas uma a uma, sempre que cada nova atitude lhes mostravam que já não sabiam mais com quem estavam lidando.  Era como se aquilo que um dia parecera uma máscara, houvera se tornado sua face verdadeira.
Ainda lembro quando ele tentara mudar. Lembro-me de vê-lo tentando voltar. Mas as paredes que se ergueram a cada lado do caminho, também se fecharam atrás dele.  E ainda posso ver seu olhar de surpresa, suas lágrimas banhando seu rosto, como quem olhava através daquela muralha ao seu redor e pudesse ver como a um filme, aquele tempo onde a estrada ainda era uma reta, quando o horizonte ainda era colorido. Naquele instante, o vi secando os olhos com o dorso de suas mãos sujas, respirando fundo, e partindo mais uma vez. Embora eu desejasse que ele percebesse que sempre é hora de uma nova escolha, que os passos dados à frente podem, a qualquer momento, mudar sua direção, estive na plateia de sua desistência surta e cega.
Agora ao invés de esperança, há medo. Há lágrimas. Há um cansaço no lugar da luta, há uma agonia no lugar da paz. Há uma tristeza profunda no lugar da alegria, há a falta de notícias, e a insana e irreal sensação de parecer possível se viver como se nada houvera acontecido. Vão desejo alimentado pela sensação de derrota. Aquele que era um filho amado, um menino com nome, casa e família, tornou-se um número. Ele agora é conhecido por ai através de um cognome. Um vulto a mais nas calçadas noturnas, um ser a mais a fugir da luz do dia como quem se acostumou à escuridão. Um corpo... Como se não houvesse alma. Na última vez em que o vi, já não havia mais beleza aparente ou uma cor sequer em sua autocriação. Lembrou-me nitidamente uma pintura abstrata em preto e branco, indecifrável para quem de nada entende do estilo. Mas foi surpreendentemente estranho perceber que ainda era visível estar intacta a moldura da arte da vida. Fora como testemunhar um recado divino. Como se Deus em sua sabedoria infinita, deixasse claro que sempre será tempo de se criar uma nova obra. Pois cada um é artista da sua própria história.


Gil Façanha

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