(RE) Fazendo escolhas (conto)




Ela era tempestade e fogo. Hora varria o mundo com suas vontades, hora queimava de desejo e agia com a impulsividade de quem não sabe esperar. Foi, em outro tempo, o retrato da pureza e tinha na voz a doçura dos anjos. Mas sua sede de amor à fez cruzar fronteiras, e feito anjo caído, fez-se humana. Sentiu todos os prazeres, anseios e temores reservados aos mortais. Cedeu às tentações, viveu em plena luz do dia seus pesadelos noturnos.

Encontrou nele a doçura da conquista, o sorriso quase sincero que a deixou iludida. Perdeu-se em ilusões adotadas, como se fossem filhas do seu próprio sangue paridas em seu coração. Ele que nunca conheceu o céu e até duvidava de sua existência, embora passeasse pelo inferno em visitas constantes, fez-se dono das vontades dela.

Sem perceber a alma sendo consumida dia a dia, as orações ficaram escassas e seus pés cobriam-se de excremento a cada passo. Sentiu sua angústia quase palpável ao estar diante da fronteira do tempo, que separava tudo o que foi daquilo que não mais seria. Deu um passo atrás e reviveu a própria história. Repensou desejos e prazeres vividos, e lamentou pela mente corrompida, as asas para sempre perdidas. Se antes vagava em um caminho já sem brilho, o mesmo que a fez mudar de rumo, agora estava mergulhada em sua escuridão peculiar. Havia esquecido o gosto do sono bendito, e na busca pelo que jamais possuíra, foi tomada pela quimera de ter em mãos o que não lhe pertencia, e passou a ser aquilo que ela mesma desacreditava que poderia se tornar um dia.

Depois de tanto tempo, estava ela rezando em voz baixa a oração que sua mãe lhe ensinou, e no meio dela, sentiu remorso ao ver que já era um texto esquecido. Entre pedaços de uma oração decorada, começou a falar com Deus. Não lembrava em que esquina havia perdido o rumo. Não conseguia lembrar em que momento deixou de ser ela para ser ele. Ali, foi invadida por uma luz sem fonte e sem destino. Parecia simplesmente estar dentro dela, e lhe aquecia o corpo. Tomada pela lucidez, viu serem destruídos todos os planos que outrora fez, e notou em meio a um turbilhão de emoções, que estava diante da última chance... Antes de ser vencida pela insensatez.

Escorregou nas paredes da consciência, mergulhou em pensamentos como nunca feito antes, e sentiu como já havia se tornado vulnerável àquela dominadora emoção que cruzou seu caminho. Em algumas das andanças por onde ela o seguia, ouvia vozes desconhecidas falarem de um tal amor sem prisão, sem domínio, sem posse, sem medo, mas era como ouvir a língua dos anjos... Ela já não compreendia. Há tempos havia abandonado o paraíso, e com o olhar distorcido, feito semente plantou-se em solo infértil e lá floresceu desengano, regado pela jovem certeza de que tudo sabia.

Diante do próprio reflexo, desconheceu aquela imagem, e ao fechar os olhos se buscou por dentro. Ao ouvir e reconhecer aqueles gritos sem eco, sentiu o peito acelerar ao perceber que se encontrava em sua autoprisão. Foi como ser invadia pela luz em plena escuridão, e seus pulmões encheram-se de ar como quem se afogou nas próprias escolhas e finalmente emergiu em busca de oxigênio, de uma nova vida... O momento da libertação. Ali, questionou a si mesma se poderia simplesmente voltar atrás, e ao encarar a constatação de que passos dados adiante não retrocedem, via na trilha de seus atos, a única estrada a seguir. Mas naquele momento, percebeu que embora estivesse encarando a impossibilidade em recuar pela mesma senda ao encontro do antigo ponto de partida, desfazer o que foi feito, ou recuperar as palavras jogadas ao vento, um novo final poderia ser escrito a partir daquele instante.

Ela nunca mais será a mesma. Mas, ainda que jamais possa voar novamente ou voltar a ser quem fora um dia, ainda assim lhe agrada a sensação de pisar em terra limpa, de sentir o perfume das flores que acompanham as mais sábias decisões. E assim entre dois mundos, tornou-se anjo noturno. Embora lhe falte às asas, todas as noites ela aguarda a próxima lua minguante para pegar carona até o céu... Até que o sol venha tomar seu lugar e na beleza do amanhecer ela retorne a terra.


Gil Façanha

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